DICIONÁRIO 'PORTEIRÊS', AQUI SE FALA 'BRASILADO'
Por Luis Carlos
Foram muitos os artigos e ensaios literários editados até hoje sobre a nossa Língua Portuguesa, suas curiosidades, o regionalismo da fala, as similaridades intertextuais dos mais renomados autores, como Mattoso Câmara, Stela Maris, Marcos Bagno entre tantos outros que, ao mesmo tempo em que convergem, divergem com a mesma naturalidade que propicia esse rico e confuso acervo lingüístico padronizado em Portugal. Mas os amigos leitores deveriam conhecer as particularidades de Porteiras, aqui no recanto do Cariri cearense, no contexto lingüístico e cultural. Se a maior parte dos brasileiros ainda não se intimidou com a nova Reforma Ortográfica (acordo luso-brasileiro que dispõe sobre as mudanças na estrutura lingüística entre os países de Língua Portuguesa), por aqui muito menos.
Vocábulos ‘invertidos’ em relação às demais regiões do Brasil, as essências da polissemia, (se é que podemos classificar assim) as ‘invenções’ de substantivos e adjetivos que Porteiras jogou no mercado. Por acaso o amigo ai sabe o que significa CABEÇA DE PORCO? Sabe o que é uma LAMBRETA num jogo de sinuca? Quem já ouviu falar em INGRIZIA? Pois é, esse curioso e aprisionante cotidiano lingüístico me custaram um trabalho de oito anos de pesquisa, até que o resultado inicial aqui está ainda não completo, porque como costuma ‘criar’ neologismos a cada dia, esse é um produto inacabado.
COTIDIANO
É muito comum andar pelas ruas da cidade e encontrar uma INGRIZIA entre a criançada ao sair da escola. As mães, na maioria das vezes, DROBAM atrás dos filhos para apaziguar as coisas, mas é coisa de criança mesmo. Passando pelo centro, na famosa Praça da Liberdade, jovens se cruzam nas idas e vinda à aula, mas Michele Tavares está preocupada porque perdeu a TAMPA da LAPISEIRA. Cinthia Alves diz que é preciso estudar muito para ser alguém na vida, porque muitas meninas de sua idade que não freqüentam a escola correm o risco de se tornarem CABEÇA DE PORCO por falta de opção de mercado. O pai da garota é um exemplo de ociosidade por não ter estudado e passa a vida inteira arrumando INGRIZIA nos bares, nas casas de jogos. Inclusive ele é um tremendo de um CERRÃO quando bebe com os amigos, mas na sinuca quase todos tomam LAMBRETA dele.
Mas Porteiras não atrai apenas pela troca de vocábulos, as expressões idiomáticas são um charme à parte. Em cada região há costumes de se falar diferente, como na populosa Serra do Araripe. Em uma passagem de três horas na comunidade de Vassourinha, o pequeno Jardel de apenas seis anos me falava sobre a saudade do pai que havia se lançado em busca de trabalho em São Paulo. Sempre assumindo a condição de ‘chefe’ da casa na ausência do titular os garotinhos do lugar trabalham no cultivo da mandioca, andu (tipo de legume semelhante ao feijão verde), na colheita do pequi e no fim da tarde disputam as tais ‘abaicadas’ como eles chamam uma corrida a pé. No distrito de Simão, expressões como ‘vai-te cobra’, caracterizam a reprovação a qualquer tipo de brincadeira saliente. É como se dissesse: “Deixe-me em paz!”. Nas tardes de baralho ou dominó, jovens tiram um barato com as belas garotas que voltam da escola ou do trabalho. Um deles exclama ao ver uma que mais chama a atenção pelo porte físico: “Olha que BITELÃO!”. Em referência a quem tem o corpo bonito. Já o outro grita: “Ei, AS MENINA, faz que olha!”. Usa-se muito essa expressão ‘EI, AS MENINA’ e ‘EI, OS MENINO’ quando se deseja falar com alguém à distância. Estranho para quem é visitante como eu, em minha chegada há oito anos, mas por aqui o povo já está OLCUSTUMADO. Aliás, tanto ‘EI, AS MENINA’ como inverter ACOSTUMAR por OLCUSTUMAR é um emprego comum até entre pessoas de nível superior. Sorrir por aqui não é comum, pois o costume mesmo é ‘SIRRIR. Alguém conta uma história pra você e diz: “Num SIRRA não que é verdade!”. Particularidades dos porteirenses. Numa sala de aula é natural pedir a LAPISEIRA de um colega emprestada, mas se você for novato na cidade, pensa se tratar de um apontador ou depósito de guardar caneta. Mas é a própria caneta! E ela não tem bocal em Porteiras, tem TAMPA. Nos fins de ano quando os amigos se juntam vêm as famosas invenções do AMIGO INVISÍVEL, como todos fazem a brincadeira do Amigo Secreto por aí a fora.
Engraçado mesmo é num jogo de futebol. Todos jogam, mas ninguém apita jogo. Em Porteiras se PIA jogo. Aqui carrinho-de-mão é CARROÇA; Gente desprezível pode ser JABAQUARA ou CANDANGO (um nome é de uma região de São Paulo, o segundo se refere ao gentílico de quem nasce em Brasília); Mas na gíria policial de uma cidade que tem cerca de 60 militares naturais da terra, pode-se também dizer T.A.N que designa pessoas de má fé; Ao perguntar: “Você conhece fulano de tal?” você pode ouvir a pérola “Né ninguém não!” em referência ao nome de quem foi citado na pergunta, ou até mesmo alguém comentar ‘Foi pior!” ao saber de alguma história engraçada ou ridículo; Em Porteiras quase ninguém foge ou vai embora, porque é mais fácil DROBAR nessas horas. Outra curiosidade foi diagnosticar a linguagem dos habitantes do pé de serra, como Sitio Jatobá, Marrocos e região. Por lá, os mais antigos moradores pronunciam ‘poxta’ para a palavra ‘porta’, ‘foxte’ para ‘forte’ etc.
COSTUMES SOCIAIS
Tradições, peculiaridades e costumes às vezes intrigantes. Quem não gosta de ser homenageado por uma turma concludente de curso, com um convite de casamento ou para ser padrinho de uma criança? Todo mundo se orgulha de uma distinção assim. Detalhe é que na antiga Conceição do Cariri esse tipo de homenagem tem um preço. Para ser padrinho ou patrono ou até mesmo ter seu nome citado numa lista de ‘homenageados’ tem que pagar uma ‘taxa’. Pasmante mesmo é ser testemunha ou padrinho de casamento. Alguém teve a louca idéia de estabelecer uma espécie de quota que hoje fica em torno de R$ 150,00 ou ajudar na despesa do matrimônio para ser declarado ‘padrinho’ do casório. Em Porteiras, escolher testemunha de casamento não tem limite. Pode-se chamar até 50 de uma vez, pois o que conta é a ‘contribuição’.
Coisas que a gente só acredita vivendo em Porteiras.
Pequeno Glossário Porteirês.
CABEÇA DE PORCO (mulher de vida fácil, prostituta)
INGRIZIA (briga, confusão, baderna)
LAPISEIRA (caneta)
DROBAR (sair de fininho, ir embora)
LAMBRETA (vencer uma partida de sinuca pelo dobro de bolas, capote)
PREGADOR (grampo de cabelo)
AMIGO CERRÃO (o que se esconde na hora de pagar a conta)
BITELÃO (corpo ou objeto avantajado)
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